
Você já pensou que sua vida seria melhor se você fosse um menino? Não? Eu já.
Tinha uns 6 anos quando estava fazendo “campeonato de xixi” com um primo no vestiário do clube, (ganhava quem fizesse o xixi que chegasse mais longe), quando minha mãe e minha tia viram a nossa competição, levamos uma bronca e eu levei uns tapas daqueles de arder na bunda, eis minha primeira lembrança do complexo de castração.
Até apanhar, não me sentia diferente dos meninos, eu não estava intimidada por não ter uma mangueirinha pra fazer meu xixi ir mais longe, eu estava toda empoderada e cheia de fé na minha capacidade de competir com os meninos de igual para igual.
Ou seja, na minha experiência infantil, foi a sociedade que me ensinou que além de ser uma menina, ser menina me tornava não elegível para competir em algumas situações. Eu aprendi a ser menina, definitivamente. Acontece que conforme eu fui crescendo, fui aceitando(nem sempre), me confortando (nem sempre) e, até mesmo me identificando (nem sempre), com tudo aquilo que me diziam que eram coisas de menina, mesmo achando muito, muito injusto meus primos poderem andar pelo clube sem camiseta e eu não, lembro nitidamente da sensação de estar vivendo uma injustiça sem precedentes na história dos meu 8 anos. Mas não é assim para todo mundo.
Imagine agora outra criança, e ela vai ao banheiro da escola pela primeira vez e entra no banheiro dos meninos. Essa criança sai e alguém da escola a vê sair do banheiro dos meninos e vai falar com a professora, a professora pergunta “por que você entrou no banheiro dos meninos?” e a criança responde inocente “por que eu sou menino”.
A Escola então entra em contato com a família, a mãe muito simples, dona de casa, o pai trabalhador da construção civil e a escola diz a família: façam alguma coisa, essa criança não pode ficar entrando no banheiro dos meninos e dizendo que é menino.
A mãe, que já sabia como toda mãe sempre sabe que seu rebento era diferente, enta ao seu modo explicar para criança que não era permitido que ela entrasse no banheiro dos meninos. A criança fica muito confusa e entende que então não deve fazer xixi enquanto estiver na escola já que ela era um menino sem autorização para usar o banheiro dos meninos. Passado algum tempo, essa criança não consegue segurar e acaba fazendo xixi na carteira da sala de aula.
O constrangimento havia sido tanto que ir a escola fica quase impossível, e a criança terminou a segunda série sem estar alfabetizada.
Estamos em 1991 e a mãe, com toda a sua simplicidade, usa o pouco que sabe para ensinar essa criança a ler pois seu desempenho na escola está cada vez pior. Assim como a minha, essa é uma história real. para esse menino, explicar que ele não era um menino não fazia nenhuma diferença, não fazia sentido, diferentemente de mim, que aceitei o rótulo de menina pois, ainda que carregado de injustiças e repressão, dentro de mim, ser menina fazia sentido, havia problemas mas fazia sentido, era confortável.
Isso é na pele o significado dos termos cisgênero (cis), e transgênero (trans). Eu sou uma pessoa cisgênera pois, o gênero que me atribuíram na infância é um lugar no qual me identifico, estou bem com o fato de ser mulher, não estar bem com misoginia e machismo não me fazem menos mulher nem determinam que eu queira ser como homem, ou seja, não me identifico com a baboseira que oprime as mulheres porém estou bem dentro do meu corpo de mulher, no espelho, Tenho estrias mas quando me vejo, tudo está no lugar, nada falta nem sobra.
E é exatamente isso que a outra criança da história nunca sentiu, por isso ela é transgênera. Até o momento em que disseram para ela que ela não era um menino, ela acreditava que era um, e por mais que a escola, a família e a sociedade como um todo tenham se esforçado de inúmeras maneiras cruéis para ensinar essa criança que não, ela não era um menino, nada funcionou.
Em um determinado momento ela optou por concordar com todo mundo para evitar constrangimentos, embaraços, e principalmente, para não magoar a mãe, fez de conta que era menina e que estava tudo bem, casou-se com um homem e teve um bebe, mas ter uma criança em seus braços só fez essa pessoa lembrar de quem ela era. Ela era um menino com um bebe nos braços que todos diziam que era um menino também. E se houvesse algo errado com esse bebe assim como havia algo errado com ele? Como dar nome? Não deu. Depois de duas semanas chamando o bebê de bebê, sua mãe interveio e registrou o bebe com o nome do pai.
Agora pensa na criança que se olha e não consegue entender se é menino ou menina? O tempo passa e a pessoa cresce, e o mundo dividido em azul e rosa faz cada vez menos sentido. Até que a pessoa chega a vida adulta e ainda não conseguiu se encaixar em nenhuma gaveta, não se sente homem o tempo todo, não se sente mulher o tempo todo, ou não sente nenhuma das opções nunca. Não se identifica, nada, ou se identifica com tudo ao mesmo tempo. Nada mesmo faz sentido no seu corpo, ora uma coisa falta ora outra sobra e o espelho é cruel pois o mundo está esperando que ela faça uma escolha e simplifique a vida do mundo. Mas nada simplifica a sua vida. Ela pode ser agênero, bigênero, ter um gênero fluido ou não binário.

Todas essas pessoas tem como problema o mundo de fora. Para nenhuma delas o problema está em ser quem elas são, o problema está em não ser o que o mundo espera que elas sejam. Só que o mundo somos nós. Somos nós que queremos facilitar nossa vida separando o mundo em 0 ou 1. Somos nós que estamos nos oprimindo e precisamos assumir que estamos nesse lugar para poder sair dele e ajudar outras pessoas a saírem desse lugar também e começarmos a facilitar a existência da nossa diversidade.
Sim eu já quis ser um menino e sim, eu já quis ser qualquer coisa que eu pudesse, mas não, eu não sou. Ninguém pode mudar o que é de verdade pois expressão de gênero não é escolha, é condição.
Comentários